O indeferimento do ingresso de dois estudantes no processo de seleção da Universidade de São Paulo (USP) por não preencherem os critérios de cota racial tem gerado críticas ao sistema de cotas. Muitos argumentam que adotar critérios raciais em um país miscigenado como o Brasil é um erro, e que as cotas deveriam ser baseadas apenas em critérios sociais, como o de escola pública.

No entanto, essa visão ignora a presença da discriminação racial em todas as dimensões da vida brasileira. O fato de sermos um país de pardos não significa que o preconceito racial tenha desaparecido, foi apenas encoberto pelo mito da democracia racial que prevaleceu por décadas.

A Lei de Cotas não adota critérios genéticos. Ela não tem como objetivo selecionar beneficiários com base em características genéticas que comprovem objetivamente que são indivíduos negros, já que não existe raça no sentido de subgrupo da humanidade.

O critério utilizado é o fenótipo, ou seja, o aspecto exterior que faz com que os indivíduos sejam reconhecidos como pertencentes a grupos étnicos distintos. É com base nesse critério que ocorrem as práticas racistas em estádios de futebol. Portanto, a luta contra a discriminação também deve ser baseada no fenótipo, mas dessa vez no sentido contrário.

Quando o Brasil adotou a Lei de Cotas e o Supremo Tribunal Federal reconheceu sua constitucionalidade, já se sabia que seria difícil definir com precisão quem teria direito ao benefício. O principal objetivo da lei era reverter o embranquecimento estimulado pelas políticas oficiais ao longo dos séculos. E esse objetivo está sendo alcançado. A conscientização da sociedade sobre essa questão é um mérito da lei, e não um defeito.

Na USP, as comissões de heteroidentificação foram criadas em resposta a demandas do movimento negro para evitar que a concessão indevida do benefício gerasse revolta nas salas de aula. Eventuais excessos na atribuição do benefício são prova de que a regra está funcionando, e não de sua falência.

Segundo as Pró-Reitorias de Inclusão e Pertencimento e de Graduação da USP, a foto apresentada na inscrição é avaliada por duas bancas independentes, e quando necessário, o candidato é ouvido pessoalmente ou de forma virtual. Há também a possibilidade de recurso caso a decisão seja indeferida. Somente após todo esse processo é que o Conselho de Inclusão e Pertencimento emite a decisão final. Caso o recurso seja indeferido, a vaga será destinada ao próximo candidato negro na fila.

Em 2024, dos 1.606 casos analisados, 1.387 foram aprovados (86%), 187 foram considerados não aderentes à política afirmativa (12%) e 32 candidatos nem mesmo compareceram às oitivas (2%). Esses números mostram que o processo é cuidadoso e deve ser tratado com seriedade e racionalidade para avançarmos na luta contra o racismo.

Portanto, é importante compreender que as cotas raciais não são um erro, mas sim uma medida necessária para combater a discriminação racial presente em nossa sociedade. E o critério do fenótipo é utilizado para identificar e reparar as desigualdades históricas enfrentadas pelas pessoas negras.