
A incompatibilidade das leis especiais e temporárias no contexto da justiça criminal com a Constituição.
O artigo 3º do Código Penal traz uma disposição que tende a ferir o texto da Constituição. Esse dispositivo estabelece que leis excepcionais ou temporárias ainda podem ser aplicadas mesmo após o término de sua vigência, desde que o crime tenha sido cometido durante esse período. No entanto, essa aplicação vai de encontro aos princípios garantistas presentes na Constituição.
O sistema garantista prega a racionalização do poder de punir atribuído ao Estado, com base em uma série de princípios. O jurista italiano Luigi Ferrajoli sistematizou os dez axiomas do garantismo penal, que incluem a ideia de que não pode haver pena sem crime, não pode haver crime sem lei, entre outros. Esses princípios estão alinhados com os preceitos presentes na Constituição.
A Constituição é claramente garantista e estabelece diversos direitos fundamentais e princípios que protegem o indivíduo. Por exemplo, no artigo 5º, encontramos o princípio da legalidade estrita, do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da presunção de inocência, entre outros. Esses princípios visam garantir um processo penal justo e a proteção dos direitos do acusado.
No entanto, a aplicação de leis penais excepcionais ou temporárias após o término de sua vigência vai de encontro a esses princípios. Isso ocorre porque o princípio da legalidade estrita estabelece que não pode haver crime sem uma lei anterior que o defina e não pode haver pena sem prévia cominação legal. Ou seja, a norma penal incriminadora ou gravosa só pode ser aplicada se estiver em vigor no momento da prática do crime.
Existem casos em que há uma antinomia entre o artigo 2º e o artigo 3º do Código Penal. O artigo 2º prevê que ninguém pode ser punido por um fato que uma lei posterior deixa de considerar crime. No entanto, o artigo 3º, ao instituir as leis penais excepcionais e temporárias, pretende relativizar a aplicação desse princípio em situações específicas. Essa relativização não encontra respaldo na Constituição, principalmente quando se trata da aplicação de normas incriminadoras ou gravosas.
Algumas doutrinas argumentam que as leis excepcionais ou temporárias têm ultratividade, ou seja, produzem efeitos mesmo após o término de sua vigência. No entanto, isso não se aplica quando se trata de aplicar uma norma a fatos cometidos durante a sua vigência. O princípio geral é que os fatos são regidos pelas regras vigentes no momento de sua prática. A retroatividade penal benéfica, ou seja, a aplicação de uma lei posterior benéfica a fatos ocorridos anteriormente, tem amparo constitucional.
Portanto, a aplicação de normas excepcionais ou temporárias a fatos praticados durante sua vigência não é uma questão de ultratividade, mas de aplicação da regra geral. O problema surge quando se trata de aplicar uma norma incriminadora ou gravosa nessa situação. Nesses casos, seria necessário afastar o princípio da retroatividade benéfica das normas, o que afrontaria a Constituição.
O artigo 3º do Código Penal, ao relativizar a aplicação da norma constitucional expressa, incorre em inconstitucionalidade. Isso porque o artigo 5º, inciso XL, da Constituição trata de uma norma de eficácia plena, que produz seus efeitos de imediato e não admite exceções.
Portanto, é indevido afastar o princípio da irretroatividade benéfica por meio de uma norma infraconstitucional, o que caracteriza a inconstitucionalidade do artigo 3º do Código Penal.
Fonte: Conjur